sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Visões

Eu lembro daquele dia como se fosse ontem. Éramos meras crianças, tínhamos no máximo 9 anos. Lembro daquele sol maravilhoso e da maresia de Miami que nos enfeitava o rosto com o ar salgado. O padrasto de minha amiga Carol ainda olhava por nós, da beira da praia sentado em sua cadeira. Nós brincávamos muito naquele mar, aquelas rochas gigantes ao redor, uma água límpida e pura, cheia de crianças assim como nós. Ah, como era bom.

- Olha, Carol, achei um peixe! Vamos ver quem acha mais peixes pela praia? - E saíamos pela praia afora. Foram as melhores férias da minha vida.

Agora crescidas, adultas, somos donas de nós mesmas. Chegamos na casa da praia que costumávamos ficar quando pequenas e nossa, como mudou! Fizeram uma extensão, construíram mais quartos, tem um banheiro enorme e ainda chuveiro e banheira de hidromassagem, tudo separadinho, lindo, branco. Só uma coisa me incomodava e era o fato de as janelas estarem fechadas, lacradas. Largamos nossas malas no canto, perto da cozinha e enquanto eu ainda ficava boquiaberta com o tamanho daquela casa que conheci quando tinha uns 4 metros quadrados, Carol me chamava para a rua. Ela era toda sorrisos.

- Quero lhe apresentar minhas duas melhores amigas de infância, Melissa e Chloe! Quando vínhamos para Miami direto, eu e elas passávamos os dias brincando na praia.

Cumprimentei as duas moças, ambas com 21 anos. Eram duas loiras gêmeas lindas, de olhos verdes e cabelos compridos ondulados, de causar inveja. Uma delas era até um pouco mais castanha (se não me engano era Melissa). Elas esboçavam simpatia no rosto com um sorriso perfeito. Assim que as vi, senti como se as conhecesse durante muito tempo. Entre uma brincadeira e outra, falei.

- Bom, eu vim para cá tentar desencalhar, mas pelo visto vou voltar é mais encalhada ainda!

Todas riram. Senti que tinha algo a mais naquele riso, algo oculto.

- Elas querem nos apresentar dois amigos delas. - Carol me falou. - Eles estão chegando daqui a pouco.

Fiquei pasma e até empolgada com a situação, afinal eu já não namorava tinha quase um ano. Enquanto conversávamos do lado de fora da casa, na varanda, percebi a expressão delas mudar quando os garotos chegaram. Era uma felicidade só, elas pareciam estar querendo que este encontro às cegas desse mesmo certo. Os dois se aproximaram. Era um loiro e um moreno, ambos muito bonitos e fofos. Nos cumprimentamos e rapidamente senti o olhar do moreninho me fisgar. Ficamos nos encarando por uns momentos até Carol me cutucar para voltar para a realidade. Uma das gêmeas fez o convite.

- Depois do almoço, vamos até à Praia do Forte para fazermos algo, vocês deviam vir com a gente.
- Nós iremos sim. - eu disse, dando uma piscadinha para Carol. O moreninho ainda não tirara os olhos de mim. - 14h na Praia do Forte.

Um pouco antes do horário combinado, Carol e eu começamos a nos arrumar. Peguei na mala uma sacola de roupas novas, ainda etiquetadas, junto com colares e pulseiras que eu havia colocado junto. Vários conjuntos de blusas e shorts eu havia comprado, queria uma bem chamativa. Peguei um maxi colar de flores delicadas rosas e amarelas, todas em degradê e uma pulseira basicamente no mesmo estilo. Peguei um conjunto de uma regata rosa com detalhes em amarelo com um short jeans escuro.

- Sabe, eu fiz uma lista das 8 coisas que eu queria fazer esse ano. A primeira delas é me arriscar mais. Queria me aventurar, subir em morros, escalar rochas, viver intensamente, sabe?

Eu ouvia Carol falando comigo, mas de repente sua voz começou a ficar distante, confusa e então eu tinha me teletransportado para outro lugar, era uma igreja ou uma capela. Tinha uma mulher rezando lá, no último banco, na penumbra. O ambiente era escuro, sombrio, apenas com velas iluminando. Lentamente ela virou a cabeça para me olhar e vi seus olhos vermelhos cor de sangue. Mas era sangue mesmo! Senti uma mão encostar no meu braço.

- ... não acha?

Carol falava comigo. Eu nem tinha me dado conta de que tinha voltado para a realidade.

- É verdade. - respondi no automático. Ainda estava abismada com o que acontecera. - Quem sabe eu coloco meu bikini? Vai que entramos no mar, né?
- É uma boa. - percebi que Carol viu como eu tinha ficado diferente, mas ia ser assustador demais contar a ela naquele momento.

Peguei meu bikini branco e fui colocá-lo. Lembrei também de pegar meu casaquinho marrom, caso ventasse muito e então saímos. Chegando no local marcado, podíamos ver toda a cidade, mais o mar e as rochas que o cercavam. Para o lado da praia, o tempo estava lindo, mas havia uma tempestade se formando para o lado da cidade. Enquanto esperávamos, ficamos conversando sobre a praia, ela era estranha e sem nenhuma onda. Havia uma lenda que dizia que aquelas águas eram as mais profundas da região, que pessoas e animais já haviam morrido ali e que era uma praia perigosíssima. Mas por que marcaram esta praia afinal? Percebi o quão Carol estava apreensiva e resolvi tentar distrai-la.

- Vamos aproveitar e fazer umas fotos aqui enquanto eles não chegam? Esse lugar é lindo! Ó, tira com meu celular.

Entreguei meu celular pra ela e me apoiei numa ruína do forte ao meu lado. Ao fundo, aparecia o mar, o morro, a cidade e um hotel gigantesco na beira da praia, e mais a tempestade que se formava. Depois das fotos, fomos descendo a trilha e encontramos os dois rapazes subindo. Assim que passaram por uma ruína, saiu de trás um bando de lhamas que pareciam muito irritadas. Cada vez a tempestade se aproximava. E cada vez os bichos iam ficando mais e mais bravos. Quando tudo ficou escuro, elas se transformaram. Os mesmos olhos que vi da mulher na capela eu vi nas lhamas. Olhos vermelhos, sangrentos e macabros. Elas começaram a correr atrás de nós, enquanto subíamos correndo até uma grande rocha. Carol era protegida pelo loirinho enquanto o moreninho me puxava para perto dele, mas percebi que só quem podia pará-las era eu. Encarei-as nos olhos e senti uma mudança em mim. Em segundos, me transformara em um monstro horripilante, com boca de dragão e fileiras de dentes assim como tubarões. Meus olhos transmutaram para o mesmo vermelho sangue que havia nas lhamas e então eu rugi, tão alto que estremeceu. As lhamas pararam e voltaram ao normal, assim como eu.

Corremos para a casa e as meninas simpáticas haviam chamado inúmeros amigos para uma festinha privada. Quando entrei na casa, vi o estrago que estavam fazendo no banheiro gigante (todos obviamente de bikinis e bermudas). Nas latrinas para roupa suja, tinha gente deitada. No chuveiro tinham quatro garotos, três valentões e um pobre coitado que estava sendo forçado a pegar bichos que estavam pelo box. Cheguei mais perto e vi uma enorme planária no chão do chuveiro. Na hidromassagem, tinham umas sete ou oito pessoas doidas, bêbadas e drogadas, tanto que contrataram até mesmo um segurança para ficar do lado de fora da hidro e deixar entrar "só pessoal autorizado". Aquela baderna estava me fazendo mal, então eu fui para a rua e de repente tudo estava nevando. Sentei em um banco e o moreno sentou ao meu lado. Ele me abraçou e tentou roubar um beijo, mas meu nojo pelo que eu tinha visto dentro daquela casa estava enorme. Ficamos abraçados um tempo. Ele falava comigo, mas eu novamente me teletransportava e então eu vi o caos. Assim que olhei para o chão, rastros de sangue vinham da casa. As pessoas que sobreviveram estavam em estado de choque do lado de fora. Foi correndo dentro de casa e a fumaça contaminava o ambiente. Havia sangue nas paredes, marcas de mãos, arranhões e pessoas caídas. Na hidromassagem, cinco pessoas estavam mortas, boiando no próprio sangue, enquanto outras duas tentavam desesperadamente sair antes que também morressem. O segurança de forma automática falava "somente pessoal autorizado". No chuveiro, dois estavam mortos. Foi horrível. O causador daquilo tudo tinha sido a planária, que espalhara uma doença fulminante que matou aquelas pessoas todas e quem ainda não estava morto, estava no mínimo condenado a não sair do recinto para não espalhar a doença. Todos estaríamos condenados a virar zumbis humanos.

E então senti minha boca queimar. Numa forte tontura voltando para o momento, vi meu moreno me beijar ansiosamente antes que a tempestade acabasse com tudo. Ainda sentados no banco, o abracei forte e deixei que os pingos de chuva acalentassem nossas almas. Foi bom ter voltado para a realidade.

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